sábado, 8 de março de 2025

A ROTUNDA DE ALCAFOZES com PASTOR, GADO e OLIVEIRA

 Apesar de constar nas vias romanas de há 2 mil anos, conforme o atestam os marcos miliares encontrados da aldeia e,  actualemente, espalhados por museus da Idanha-a-Velha e Idanha-a-Nova e um onde na esquina de um prédio na Rua Joaquim Franco, Alcafozes encontra-se desde há muito afastado de uma via principal e está há muitas décadas a centenas de metros da estrada nacional nº 332, partindo da povoação uma outra estrada para Idanha-a-Nova, a nacional 354. Quando era miúdo costumava ir jojar à bola para o Leque com o meu primo João. Nessa altura, o Leque era formado por duas estradas perpendiculares, com quatro triângulos arborizados e outras tantas placas de identificação dos destinos. Essas placas eram altas, com duas "pernas" a segurar um quadro branco em pedra ou tijolo, um indicando a entrada de Alcafozes e o do lado oposto apontando para Idanha-a-Nova (13 kms), outro para a Granja de São Pedro (9 kms) e o da direcção oposto (Medelim 13 kms, Covilhã (?) e Guarda (90 kms). 
Não sei quando, já não vou `"terra" à décadas, a Junta Autónoma das Estradas, sabe-se lá porquê, arrassou aquele belo espaço, onde passava um carro uma vez por festas e construiu um aborto de algo que se parece com uma rotunda, uma rodela despida de nada, sem qualquer significado e ainda por cima inclinada, embora ligeiramente de Alcafozes para Idanha-a-Nova. Já é mania... 
Soube há tempos que existe um movimento para "povoar" essa espécie de rotunda com algo que seja um ícone da terra. O motivo ornamental, segundo logrei descortinar, estaria de acordo com algumas produções da terra, pintadas em letras de "caixa alta" num muro perto do tal anel no tal alcatrão da  confluència da 332 com a 354: "terra de pão e carvão". 

É um facto que existe produção de pão em Alcafozes desde tempos pré-românicos e o carvão foi uma necessidade dos anos 40, 50 e 60, actividade que levantou celeuma devido a problemas de sáúde, mas qualquer destas actividades contribuiu como mais-valia para a comunidade, mas praticamente para consumo individual. O meu avô fez carvão durante um curto espaço de tempo e a minha avó era especialista na feitura de pão para a família, amassando-o em casa e finalizando a conzedura num dos fornos da aldeia, onde fui bastas vezes com ela. Após estudar mais ou menos dois mil anos da História de Alcafozes, conseguindo pormenores aqui e ali e ligando-os numa sequência lógica, não deixa de ser um exagero e uma imprecisão essa tirada do "pão e do carvão". O  que constatei ao longo deste longo período é existência consistente de uma grande actividade de pastorícia de gado e a exploração intensiva de azeite, como o provam alguns dos lagares dispersos pela zona de Alcafozes. 

Assim sendo, e revendo a historiografia de Alcafozes, os responsáveis que se propõem a requalificar aquela espécie de rotundas com sacos de carvão e pães, deveriam concentrar-se na riqueza que alimentou Alcafozes, e não só, durante milhares de anos, desde os tempos remotos em que pastores tomavam conta de milhares de  cabeças de gado e dos milhões de litros de azeite que sairam dali para outras paragens, enriquecendo os latifundiários locais. Voltando, portanto, à rotunda que está nas congitações dos responsáveis. este esboço que apresento na foto, com o pastor, o gado e a secular e produtiva oliveira deveriam ser os icones de Alcafozes no "hall" de entrada para a aldeia. Pelo menos estaria salvaguardada a verdade histórica desta aldeia milenar. 

O pastor, o gado e a oliveira numa futura rotunda de Alcafozes


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

AS CAGANITAS das CABRAS e os CAGALHÕES em FAMÍLIA

À primeira vista as caganitas das cabras e os cagalhões das pessoas nada têm em comum. Contudo, com um bocadinho de jeito a merda é a mesma. Nos mesees de Novembro, Dezembro, Janeiro e, por vezes, até Fevereiro procedia-se à apanha da azeitona, uma prática milenar que pouco ou nada mudou com o rolar dos séculos, a náo sera substituição de homens e mulheres por máquinas infernais que desbastam uma oliveira num abrir e fechar de olhos, decepam ramos e esmagam ninhos de aves, a sua casa e o seu abrigo. Os ranchos de homens e mulheres da aldeia pertencem à história e, por isso, convém recordá-la. Aí pelos anos 50 do século passado ainda se juntavam mais ou menos de três grupos de 20 ou trinta almas cada um, com a particularidade de a paridade de sexo ser aí bastante rigorosa, com homens e mulheres em igualdade numérica, uns casados, outros solteiros e mais uma minoria assim-assim. 

Era um trabalho árduo e madrugador. Ainda a luminosidade do dia vinha longe, aí por volta das 5 da madrugada, já os galos cantavam. Por essa hora, o "comandante" do grupo acendia o lume, comia uma espécie de pequeno almoço de feijões e calcorreava as ruas escuras como breu, sem iluminação artificial, soprando um búzio (de onde viria tal "instrumento"?) para acordar os compoonentes do rancho, que partiam para o olival ainda noite cerrada. No campo, a hora era de encher sacas que dessem 15 escudos por dias ou um nota (100 escudos) por semana. Trabalhava-se por equipas que se vigiavam umas às outras para nenhuma delas asquirir uma vantagem de peso significativa. O Inverno inclemente, temperado de frio, cchuva e neve não reduzia o labor. As sacas protegiam da chuvam desde que não despejassem cântaros de água do céu. Havia que aguentar a  apanha de milhares de quilos de azeitonas por dias e levar para casa uma mísera meias dúzia de quilos do fruto das oliveiras. O frio, esse, gelava as mãos e o tacto dos dedos desaparecia, inca+az de destrinçar uma azeitona de uma caganita de cabra e, tufa!, para dentro do saco. Secos ou molhados, eram assim passados os meses da apanha da azeitona transportadas em carros de bois para a casa senhorial a quem pertencia o olivais, um fonte de receita anual que dava ânimo para as culturas que se seguiam, 

As noites em Alcafozes eram escuras como breu, a não ser que houvesse luar. Dentro das casas, as candeias ou os candeeiros a petróleo davam uma luz precária que agitavam sombras gigantescas. No Verão, nomeadamente em Setembro quando o calendário escolar era diferente,  que ia de férias até à aldeia tinha de se sujeitar às condições básicas existentes. As casas de banho eram uma recordação que tinha ficado na cidade e cadaum desencarrasca-se como podia para fazer as suas necessidades. Não era raro encontrar à beira dos caminhos uns tarolos intestinais já pretrificados, muito raramente com um pedaço de papel simples ou de jornal já amarelado por perto. Num dos locais mais altos  de Alcafozes, o Cabeço, existia uma pedreira que distava uns 300 metros das casas, perto de um cancelão que era porta de  entrada ou de saída de uma tapada. Acabado o jantar, lavada a loiça, antes das conversas perto das soleiras das portas sentados em cadeiras de vime ou tropeços de cortiça, havia sempre quem tivesse de ir despejar a tripa, O WC, obviamente que era a pedreira. Quatro, cinco, seis, sete pessoas, dependia das vontades orgânicas, caminhavam pela negritudeda noite para expelir os tais cagalhões comunais. Como ninguém se via, baixavam-se as calças e as saias e lá vai disto, enquanto se conversava sobre o dia-a-dia, os preparativos do dia seguinte ou, claro, a vida dos outros. Às apalpadelas, lá se encontrava um "renova" de pedra, sempre com o cuidado de não ser mordido por um lacrau e passar a noite a ganir, Cabras e pessoas, no final tudo vai dar so mesmo... 

O início trabalhoso antes de chegar à mesa. 


domingo, 23 de fevereiro de 2025

A ODISSEIA DE UMA VIAGEM FÚNEBRE PARA ALCAFOZES

 Era um domingo de sol quente de Outono. Fui ao Estádio da Luz ver o jogo entre o Benfica e o Sporting. O meu clube ganhou esse encontro por 4-1, com 4 golos do fenomenal Eusébio. Fui radiante para casa, como é evidente. Não estava ninguém. Os meus pais tinham ido dar o passeio domingueiro. Quando ia comer pão com manteiga, aquele pão escuro tão saboroso daquela época, tocou o telefone. Estranhei. Ainda me lembro do número: 362862. Atendi.

Uma voz rouca do outro lado do fio e uns ruídos tão característico ao tempo deu-me a pior notícia que poderia imaginar, embora o meu avô sofresse há uns meses de uma doença grave.
Lá, da longínqua aldeia de Alcafozes, distrito de Castelo Branco e concellho de Idanha-a-Nova, uma voz roufenha informou a morte do meu avô materno, Joaquim Matos Rolo ou Joaquim Brito -- por mais estranho que possa parecer nos dias de hoje ele tinha dois nomes registados -- figura conhecida na terra por 'ti Estroina.
Mal desliguei o telefone o meu pai e a minha mãe entraram e fui obrigado a comunicar-lhes a triste, mas esperada, ocorrência. Rapidamente os meus tios foram informados do falecimento e horas depois todos estavam a caminho da aldeia, no automóvel do meu pai, ficando de fora eu e o meu primo João, por já não cabermos na viatura, uma carrinha Fiat 124 amarela.
Deixei rolar umas lágrimas â janela e custou-me a "desatar" o nó que me apertava a garganta. O meu avô Joaquim era uma figura que influenciara profundamente a minha formação, era a pessoa da família que eu mais adorava e via-o como uma espécie de herói ao vivo e não os de capa e espada dos livros aos quadradinhos. Ainda hoje, passados todos estes anos, sigo na íntegra os seus princípios morais e dogmas sociais, o que me deixa à vontade para andar de cabeça levantada por onde quer que passe.
Aquelas nossas conversas noite fora nas cálidas noites de Verão, nas cadeiras de palha à porta da casa que ele construiu com as suas próprias mãos, moldaram-me o carácter e orientaram-me a vivência.
Eu e o meu primo João apanhámos o comboio da 00h05, na Estação de Santa Apolónia, para a Beira Baixa. Tudo correu bem até à estação do Entroncamento. Aí tudo se complicou. Saímos da composição para irmos comprar sandes e cerveja numa das cervejarias da rua em frente à entrada das bilheteiras. Subimos para os degraus da última carruagem com a merenda na mão. Ficámos com cara de parvos quando o comboio começou a andar e a nossa carruagem, mais as duas da frente, não se mexia.
Como dois patetas, ainda ficámos na esperança de que se tratasse de alguma manobra. Nada disso. Um empregado das bagagens disse-nos que as carruagens da frente seguiam para a Beira Baixa e aquela onde estávamos tinha como destino a Linha do Leste (Elvas e Badajoz).
O funeral estava marcado para o final da manhã e o próximo comboio para Castelo Branco saía de Lisboa às 07h35, o que significava que não chegaríamos a tempo de nos despedimos do nosso avô Joaquim. Mas não desistimos.
Como nos servia seguir até Abrantes aproveitando a Linha do Leste entrámos na carruagem e partimos uma meia hora depois. Às 3 da madrugada chegámos ao Rossio ao Sul do Tejo. Estava nevoeiro e não se via vivalma. Procurámos um táxi e nem um. Ainda fomos a casa de um dos motoristas de táxi, por indicação do chefe da estação, e ele recusou fazer a viagem que pretendíamos. Deve ter pensado que eramos dois meliantes que o assaltariam no trajecto.
Tentámos uma boleia na ponte que atravessa o Rio Tejo. Nada de nada. Nem um cão ou um gato se moviam naquele nevoeiro tão sebastiânico. Subitamente ouvimos o silvo agudo de uma máquina de comboio. Corremos para a estação. Desilusão. Era um comboio de mercadorias.
Entabulamos conversa com o maquinista. Aquela composição era designada por "Frateleiro" e não fazia serviço de passageiros, a não ser os que trabalhavam na construção da barragem do Fratel. Contámos a nossa adversidade e pedimos uma "boleia" até Castelo Branco num dos vagões. O homem teve pena de nós e anuiu, com a condição de assumirmos a nossa responsabilidade em caso de se verificar um acidente.
O "Frateleiro" parava em todas as estações e apeadeiros. Ajudámos a tirar colchões, bicicletas e cabras dos vagões. Já passava da uma da tarde quando chegámos a Castelo Branco. Desanimados, já sabíamos que o funeral estava perdido. A esta hora a família devia estar a pensar por onde andaríamos ou se nos tinha acontecido alguma coisa. A era dos telemóveis ainda estava nos horizontes do tempo.
Para nos complicar ainda mais a vida, a camioneta de passageiro para Idanha-a-Nova avariou na Ponte de S. Gens. Tivemos de esperar por outra. Depois de Idanha-a-Nova para Alcafozes eram mais 13 kmslá fomos estrada fora numa ronceira camiota da carreira, que "dormia" no adro da igreja de Alcafozes, e quando chegámos, por volta das 6 da tarde, fomos directos ao cemitério. "Boa tarde", saudámos o coveiro. O homem apanhou um susto dentro da cova que estava a abrir. "Ó almas do diabo, que quereis daqui...", praguejou.
A boa notícia é que o funeral ainda não se efectuara. Que alívio. Corremos para casa e a família recebeu-nos com alívio. Dissemos o que se passara naquela odisseia azarada. Adiaram o funeral à nossa espera e também porque andava à nossa procura. Já era noite.
O corpo do meu avô Joaquim estava dentro do caixão, no meio da sala, apoiado em quatro cadeiras. Reparei que a gatinha da casa estava aninhada no espaço por baixo da urna. A minha avó disse-me que a bichana não saíra dali nem por um minuto.
Fechou-se o caixão e saiu o funeral à luz de velas dos homens da Irmandade da Misericórdia, à qual o meu avô também pertencia. Usavam umas capas roxas e uns capuzes em forma de bico. O burro zurrou quando o corpo do dono saiu de casa. Fiz questão de puxar o armão de duas rodas juntamente com o meu primo João até ao cemitério.
E aí jaz o meu saudoso avô Joaquim!

O avô Joaquim, o ti Estroina de Alcafozes, Eu e o meu primo João levámo-lo até à última morada.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

CAPELA DE NOSSA SENHORA DAS DORES

A capela foi construída no século XVIII, refletindo as características arquitetônicas da época barroca. Apresenta uma fachada simples, mas elegante, com elementos típicos do barroco português, como altares decorados e azulejos. Nossa Senhora das Dores é venerada como a padroeira dos aflitos, e a capela se tornou um local de peregrinação para os fiéis da região.

Era a capela onde as grávidas iam rezar, para que tivessem um parto normal e com menos DORES possíveis. No seu interior, só tem um pequeno altar com a imagem da Sª das Dores. Está sempre fechada, e só é aberta uma vez por ano no período da Quaresma, para arejar e limpar.

A capela de Nossa Senhora das Dores (Foto e investigação de João Rolo)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O MEU AVÔ NO ASSASSINATO DE SIDÓNIO PAIS

 Noite cálida numa pequena aldeia da Beira Baixa. Alcafozes. Um logradouro fundado por romanos, mais ou menos no século I, onde se pastoreavam vacas, cabras e ovelhas. Era comum nas férias grandes passar horas à conversa com o meu avô Joaquim. Sentados no solar da porta, nas tradicionais cadeiras de verga, ouvia as suas palavras, bebia os seus conhecimentos e registava as suas memórias. Até aos meus 18 anos, altura em que o meu avô faleceu, foi ele quem moldou o meu carácter para sempre. Espinha direita, verticalidade e desassombro foram os dogmas que me transmitiu. Impunha-se pela sua figura imponente e carismática, não necessitando sequer de botar palavra para todos à volta se submeterem a uma postura de reverência quase religiosa. Era como um alcaide no seu castelo. Sentia-me seguro perto dele. Ali ninguém me incomodava física ou psicologicamente. Um olhar dele bastava para afastar qualquer veleidade de disputa.

Nessas longas horas em que se esperava pelo refrescar do astro nocturno naquela rua de pedra granítica, soube, entre muitas outras narrativa, de como ocorrera a ascensão e morte do quarto presidente da República Portuguesa, Sidónio Pais.
14 de Dezembro de 1918.
A notícia do assassinato a tiro na Estação do Rossio, caiu repentinamente no quartel de Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, onde o meu avô prestava serviço militar. Os soldados do esquadrão aparelharam os cavalos num ápice e carregaram as armas. Saíram a galope pela Avenida 24 de Julho, atravessaram o Cais do Sodré e subiram ao lLargo do Carmo. A multidão já enchia as ruas e gente pacífica misturava-se com desordeiros oportunistas para tomarem conta da situação. Na descida íngreme da Calçada do Carmo para a Estação do Rossio os cascos dos cavalos escorregavam nas pedras do estreito arruamento. Havia quem quisesse derrubar a tropa das selas e o caminho foi aberto a golpes de sabre. Lisboa era uma caos na zona dos Restauradores.
Sidónio Pais, major de Artilharia, mas fundamentalmente um brilhante professor de Matemática, distinguia-se como professor de Cálculo Diferencial e Integral na Universidade de Coimbra, exalava o último suspiro no Hospital de São José. O funeral do presidente que acabara com as perseguições assassinas dos republicanos à Igreja Católica e que decidira o sufrágio directo e universal para eleger o Presidente da República foi tumultuoso e reuniu uma multidão impressionante para a época.
O meu avô e os camaradas de armas de Lanceiros 2 tentavam restaurar a ordem, atemorizando os mais excitados com os cavalos cobertos de suor. Seguiram-se dias de revoltas populares das milícias armadas e levantamentos em unidades militares. Dada a situações caótica em que o país mergulhou houve necessidade de cavalgar de noite de Lisboa para o quartel de cavalaria de Santarém, onde, aliás, o meu avô assentara praça dois anos antes. A desordem em Portugal evitou que ele integrasse o Corpo Expedicionário na I Guerra Mundial.
Entre tiroteios e escaramuças, ora em Lisboa, ora noutros pontos do país, ele esteve presente na maioria deles, nesses tempos turbulentos para a jovem República. Na última fase da sua carreira militar, foi transferido para Elvas, numa altura em que se suspeitava que os espanhóis estariam prestes a intervir (invadir)em Portugal, uma intenção que o rei castelhano Afonso XIII não escondia nos meios diplomáticos.

A invasão não se processou e o meu avô passou à disponibilidade no Batalhão de Caçadores 8, aboletado em Elvas, uma unidade onde eu acabei por prestar serviço, desde o final de Março até 12 de Junho de 1975.
Livre de todas as incidências e obrigações castrenses, numa altura em que estradas e transportes se limitavam a desaguar em Lisboa ou no Porto, o meu avô fez a pé a caminhada entre Elvas e Castelo Branco e daí mais 50 quilómetros até à aldeia de Alcafozes, onde ele me contava a sua odisseia, levando às costas um precioso par de botas de cavalaria e comendo figos, bolotas, ameixas, pêras, maçãs e amoras pelos caminhos agrestes desbravados pelos passos firmes e vigorosos através dos campos cobertos de restolho.
Obrigado, avô Joaquim, por essas noites inesquecíveis.

Soldados de Alcafozes no assassinato do presidente Sidónio Pais.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

A CASA DOS MEUS AVÓS

Esta é a casa original dos meus avós, onde entrei pela primeira vez aos seis meses de idade. Quando, mais velho, tomei consciência do que me rodeava, esta era a casa dos meus sonhos. Aquela pela qual eu aguardava um ano para ali passar a quase totalidade do mês de Setembro. Como não tenho uma foto da casa nessa época, o filho da mãe que mas roubou que as coma ao pequeno-almoço em vez de flocos, pintei este quadro que a reproduz quase, na sua essência, inspirada fielmente da memória que perdura, dos muitos detalhes que recordo, dos cheiros que aromam o imaginário.

Na noite anterior à viagem para Alcafozes mal dormia, tal era a excitação de regressar ao castelo encantado do meu avô Joaquim e da minha avó Rola, no Cabeço. Olhava embevecido para as pedras da fachada, empoleiradas com sabedoria, uma rusticidade que lhe conferia o ar natural de uma aldeia acima do Tejo.
Deitado, observava os pássaros entre as telhas a caminho dos seus ninhos. Pura magia. Na cozinha, ao lado da sala e de dois quartos, a panela de ferro aquecia com o lume que a lambia o almoço e o jantar de um dia que começa com as fatias de pão a torrar nas brasas.
No piso térreo ia visitar os burros ali instalados numa alcatifa de palha e, apesar do feno ma manjedoura, surripiava uma maçã ou uma pera para levar às beiças rugosas do jerico. De vez em quando dava uns pulos na forragem que chegava ao chão do andar de cima.
À medida que a idade avançava, não era só eu que mudava, a casa também. Desgostou-me aquele "facelift" na fachada que escondeu o lego de pedras e as rugas identitárias. Perdia o encanto para se equivaler a uma qualquer casa dos subúrbios das grandes cidades. Modernizava-se, aconchegava-se, por um lado, mas definhava por outro e aos poucos deixei de a amar como a amava para ficar só embrenhado na nostalgia. Aquela afeição que nutria por ela sumiu e esfumou-se no pó de arroz e no rímel de uma maquilhagem que não merecia. O conforto e o bem-estar não precisam de ser expostos como sinais públicos de entesouramento privado,
A côdea e o miolo de uma habitação de uma aldeia característica podem coexistir em harmonia para que não se desfigure a imagem que transparece para fora. Nunca me pareceu impossível que um interior recheado com um luxo das arábias não pudesse continuar a ser envolvido por uma imagem externa de rusticidade tradicional. Aliás, até deveria ser obrigatório se a porca da política não fosse o que é.
Quem não preserva o passado não projecta o futuro.
De qualquer modo, desculpem lá o revivalismo.


Pintura da minha autoria da casa (original) dos meus avós


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A VIAGEM LISBOA-ALCAFOZES nos anos 50

A primeira recordação de uma longa viagem com ela aconteceu na visita anual à Beira Baixa, província de onde é natural a minha família. Teria eu uns 4 ou 5 anos. O despertar para essa verdadeira epopeia iniciava-se muito cedo. Às 2h30 ou 03h00 da madrugava já os meus pais me chamavam para levantar da cama. Ainda ensonado, mas muito excitado pelo acontecimento que me aguardava, seguia-se a lavagem o pequeno-almoço quando ainda os galos não cantavam, os últimos acertos e retoques da bagagem e, finalmente, a ida para a estação de Santa Apolónia. O comboio para a Beira Baixa partia da Linha 2 às 07h35. Naquele tempo, finais dos anos 50, as composições eram uma longa fila de carruagens de I, II e III classe. Eu ficava fascinado com aqueles "monstros" sobre carris e o cheiro que deles emanava. O meu Pai, nessa altura, só tinha 15 dias de férias e seguia mais tarde de carro, a tempo de convivermos todos nas festas anuais de Nossa Senhora do Loreto. Portanto, este trajecto obrigatório de inícios de Setembro fazia-se sem ele, mas com a minha Mãe, as minhas tias e o meu primo. Mal o comboio se punha em movimento eu queria era ir pendurado à janela. Não havia ainda aquelas modernices do ar condicionado e sentir o vento na cara, ouvir o roncar da locomotiva diesel e observar aquela longa extensão de carruagens nas curvas deixavam-me extasiado. A minha Mãe estava sempre a puxar-me para dentro, não só por questões de segurança, mas também para não ficar todo mascarrado com as partículas de fumo ejectadas pela locomotiva. E logo ela que queria sempre tudo muito limpo, fosse em que circunstâncias fosse.

Passadas as estações de Vila Franca de Xira, Santarém, Abrantes, já quando o comboio seguia paralelo ao rio Tejo e se vislumbrava o majestoso castelo de Almourol era hora da abrir o saco da merenda. E como sabiam bem as sandes de carne assada, os pastéis e as pataniscas de bacalhau ou os carapaus fritos.
De quando em vez lá ia a minha Mãe buscar-me por uma orelha à varanda da carruagem, muito parecida com aquelas que se vêm nos filmes do Far-West. Quer dizer que chegava a Castelo Branco com as minhas pobres orelhas em brasa...
Na capital da Beira Baixa, o calor já apertava bastante às 12h30. Aí, uma camioneta de passageiros levava-nos para a garagem central da empresa de transportes de passageiros Martins-Évora. Havia que esperar pela ligação rodoviária entre Castelo Branco e Idanha-a-Nova. Eu ficava esbaforido com o calor e lembro-me da senhora que vendia bananas e comia uma ou duas.
Mas ainda havia que fazer o percurso de Idanha-a-Nova para Alcafozes, numa relíquia das estradas que era a vetusta Ford, apenas com uma porta ao meio, a arrastar-se e a fumegar do radiador pelo caminho de terra e saibro até chegarmos, já quase ao pôr-do-sol, a Alcafozes, o nosso destino.
À entrada da aldeia estava sempre a minha avó à nossa espera, às vezes com um jerico pela rédea para ajudar a levar as malas e bagagens até à casa construída pelo meu avô Joaquim.
Ainda nem sequer tinha entrado em casa e já andava a correr atrás das galinhas e, obviamente, a minha Mãe, mais uma vez, a puxar-me as orelhas e a enfiar-me numa bacia de água para me lavar no final daquela longa maratona.
Uffff!

Eu, à direita, já crescidinho. E o bigode também...

A ROTUNDA DE ALCAFOZES com PASTOR, GADO e OLIVEIRA

 Apesar de constar nas vias romanas de há 2 mil anos, conforme o atestam os marcos miliares encontrados da aldeia e,  actualemente, espalhad...